Fechar

Busca no site:

Posicionamento da SBPT sobre os Dispositivos Eletrônicos Para Fumar (DEFs)

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) está na fase final de elaboração de seu posicionamento quanto à liberação do uso dos DEFs e, neste oportuno momento (abril de 2022), ciente da forte pressão da indústria do tabaco, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia se posiciona veemente contra a liberação da comercialização, importação e propagandas de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, se mantendo a favor da manutenção da RDC 46/2009.  Além disso, exigimos medidas mais rigorosas para fiscalização e punição de violadores desta resolução. Vemos com preocupação o aumento do uso desenfreado desses dispositivos, em especial entre os nossos jovens.

Os cigarros eletrônicos são conhecidos no Brasil pelo termo Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs). São chamados também de “vapes”, e-cigarros, e-cigs, e-cigarettes ou “pen drive”. Os DEFs são uma ameaça à saúde pública, porque representam uma combinação de riscos: os já conhecidos efeitos danosos à saúde e o aumento progressivo do seu uso no país. Em especial, esses dispositivos atraem pessoas que nunca fumaram, persuadidas pelos aromas agradáveis, sabores variados, “inovação tecnológica” e estigmas de liberdade.

A edição 2019 da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE, 2019) entrevistou estudantes do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio das redes pública e privada. Os maiores índices de experimentação de cigarro eletrônico foram observados entre os escolares de 13 a 17 anos da rede privada de ensino em todas as Grandes Regiões do Brasil em 2019. Os maiores percentuais de experimentação de DEFs ocorreram na Região Centro-Oeste (23,6% na rede pública e 24,3% na rede privada de ensino).

Sabemos que os cigarros eletrônicos contêm nicotina e várias dezenas de substâncias químicas, incluindo cancerígenos comprovados para pulmão, bexiga, esôfago e estômago. Há, ainda, o risco de explosões do aparelho e intoxicação. Infelizmente, a nicotina persiste como uma das drogas mais utilizadas no mundo e o tabagismo, que matou mais de 100 milhões de pessoas no século XX, poderá matar um bilhão no século XXI, com grande participação dos DEFs.

De forma sorrateira, a indústria do tabaco lançou esses produtos no mercado usando duas estratégias principais: o discurso de redução de danos em relação ao tabagismo convencional e como opção de tratamento para cessação dos cigarros combustíveis. Outra jogada foi propalar que os produtos não contêm monóxido de carbono e, assim, tentar normalizar novamente o seu uso, inclusive em ambientes fechados. Apresentados como “saudáveis”, os DEFs seriam a “solução tecnológica” para o anseio de uma importante fração de tabagistas: a ideia de poder fumar sem culpa, já que o produto “se trataria apenas de vapor de água” e não conteria substâncias tóxicas e perigosas. Entretanto, não é essa a realidade sobre esses dispositivos.

Estudos científicos mostram que o uso dos DEFs, tanto agudo como crônico, está diretamente ligado ao surgimento de várias doenças respiratórias, gastrointestinais, orais, entre outras, além de causar dependência e estimular o uso dos cigarros convencionais. Em contrapartida, o conhecimento sobre esses malefícios ainda é pouco difundido entre seus usuários.

A EVALI, sigla em inglês para lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico, é uma doença pulmonar relacionada ao uso dos DEFs, descrita pela primeira vez no ano de 2019, nos Estados Unidos. Essa lesão pulmonar foi atribuída, inicialmente, a alguns solventes e aditivos utilizados nesses dispositivos, provocando um tipo de reação inflamatória no órgão, podendo causar fibrose pulmonar, pneumonia e chegar à insuficiência respiratória. Até janeiro de 2020, o CDC, nos Estados Unidos, registrou 2.711 casos de EVALI hospitalizados e até fevereiro do mesmo ano 68 mortes foram confirmadas. A faixa etária média era de 24 anos, 66% dos acometidos pertenciam ao sexo masculino e o tempo médio de utilização foi de 12 meses.

No Brasil, em agosto de 2020, de acordo com dados obtidos pelo The Intercept, por meio da Lei de Acesso à Informação, a ANVISA havia notificado sete casos de EVALI (enviamos uma carta à agência, que não atualizou esses dados). Ainda não temos estudos de base populacional que mostrem a real prevalência de uso dos DEFs em nosso país, mas a Associação Médica Brasileira, em um de seus artigos, relata a estimativa de 650 mil usuários.

Em 2009, a ANVISA estabeleceu a regulamentação que proibiu venda, importação e propaganda desses produtos (RDC 46/2009). Contudo, a comercialização online dos DEFs é comum e, apesar da proibição, até mesmo grandes lojas de departamento vendem dispositivos eletrônicos para fumar, livremente, para crianças e adolescentes. Mesmo as ações e multas da ANVISA parecem não inibir esse comércio.

Dados apontam que a redução dos números de fumantes no Brasil está estagnada e, o mais grave, é que a prevalência de fumantes entre jovens de 18 a 24 anos residentes nas capitais brasileiras aumentou de 7,4% para 8,5% entre 2016 e 2017. Vários fatores têm contribuído para o aumento do número de fumantes jovens, como a ausência de fiscalização pela ANVISA da comercialização dos DEFs pela Internet e o modelamento dos jovens por influencers.

Desta forma, a ampla utilização dos DEFs pode reverter, em pouco tempo, o sucesso das políticas de controle do tabaco obtido em décadas de esforços do Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT). A comunidade científica e de saúde pública brasileira só espera uma coisa da ANVISA: que NÃO libere sua comercialização no Brasil. Que exerça seu papel de proteger a saúde da população brasileira.

Além da manutenção da proibição definitiva desses dispositivos no Brasil, é necessário iniciar uma rotineira e efetiva fiscalização da venda desses produtos, assim como buscar meios de impedir que os grandes conglomerados de comércio varejista continuem a desafiar as autoridades de saúde. Os cigarros eletrônicos não podem reverter décadas de esforços da política de controle do tabaco no Brasil.

Laura Queiroz e Paulo Corrêa – Comissão de Tabagismo da SBPT

Irma de Godoy – Presidente da SBPT

Referências

  1. IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde Do Escolar PENSE 2019.; 2021. https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101852
  2. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Cigarros eletrônicos: o que sabemos? Estudo sobre a composição do vapor e danos à saúde, o papel na redução de danos e no tratamento da dependência de nicotina. 1. ed. Rio de Janeiro – RJ: Coordenação de Prevenção e Vigilância, 2016.
  3. Salzman GA, Alqawasma M, Asad H. Vaping Associated Lung Injury (EVALI): An Explosive United States Epidemic. Missouri Medicine 2019; 6(116):492-496.
  4. King BA, Jones CM, Baldwin GT, Briss PA. The EVALI and Youth Vaping Epidemics —Implications for Public Health. The New England Journal of Medicine 2020; 382:689-691. DOI: 10.1056/NEJMp1916171.
  5. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada. RDC nº 46, de 28 de agosto de 2009.
  6. Am J Respir Crit Care Med Vol 202, Iss 2, pp e5–e31, Jul 15, 2020.
  7. ALEXANDER, C. et al. Chronic inhalation of e-cigarette vapor containing nicotine disrupts airway barrier function and induces systemic inflammation and multiorgan fibrosis in mice. American Journal of Physiology-Regulatory, Integrative and Comparative Physiology, [s. l.], 4 jun. 2018. Disponível em: https://journals.physiology.org/doi/full/10.1152/ajpregu.00270.2017. Acesso em: 6 jun. 2021.
  8. AMB-ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA DA AMB, ALERTA. Warn against the use of electronic nicotine delivery devices: Electronic and heated cigarettes. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 63, n. 10, p. 825-826, 2017.
  9. BARRADAS, A. S. M. et al. Os riscos do uso do cigarro eletrônico entre os jovens. Global Clinical Research Journal, v. 1, n. 1, p. e8-e8, 2021.
  10. BOZIER, J. et al. How harmless are E-cigarettes? Effects in the pulmonary system. Current opinion in pulmonary medicine, v. 26, n. 1, p. 97-102, 2020.
  11. CAVALCANTE, T.M. et al. Conhecimento e uso de cigarros eletrônicos e percepção de risco no Brasil: resultados de um país com requisitos regulatórios rígidos. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, p. e00074416, 2017.
  12. CDC. Center for Disease Control and Prevention. Youth and Tobacco Use. Atlanta, GA: Center for Disease Control and Prevention. 2019.
  13. CHERIAN, S. V.; KUMAR, A.; ESTRADA-Y-MARTIN, R. M. E-Cigarette or Vaping Product-Associated Lung Injury: A Review. The American Journal of Medicine, v 133, n 6, p 657-663, 2020
  14. D’ALMEIDA, P. C., Silveira, M., Poiano, R., Américo, B., Padula, A. L., & Santos-Junior, N. Lesões Pulmonares Associadas ao Uso do Cigarro Eletrônico.
  15. DE MESQUITA CARVALHO, A. Cigarros Eletrônicos: o que sabemos? Estudo sobre a composição do vapor e danos à saúde, o papel na redução de danos e no tratamento da dependência de nicotina. Revista Brasileira de Cancerologia, v. 64, n. 4, p. 587-589, 2018.
  16. FINARDI, B. C. Nível de conhecimento dos estudantes de graduação da área da saúde sobre cigarros eletrônicos. 2021.
  17. FUENTES, X. F. et al. VpALI—vaping-related acute lung injury: A new killer around the block. Mayo Clinic Proceedings. Elsevier, 2019. p. 2534-245.
  18. HARTNETT, K. P. et al. Syndromic surveillance for e-cigarette, or vaping, product use–associated lung injury. New England Journal of Medicine, v. 382, n. 8, p. 766-772, 2020.
  19. HILTON, R. et al. E-cigarettes and vaping associated lung injury: a case series and brief review. The American Journal of the Medical Sciences, v. 359, n. 3, p. 137-139, 2020.
  20. KIM, S. et al. Cariogenic potential of sweet flavors in electronic-cigarette liquids. PLoS One, v. 13, n. 9, p. e0203717, 2018.
  21. KING, B.A. et al. The EVALI and youth vaping epidemics—implications for public health. New England Journal of Medicine, v. 382, n. 8, p. 689-691, 2020.
  22. Layden JE, Ghinai I, Pray I, et al. Doença pulmonar relacionada ao uso de cigarro eletrônico em Illinois e Wisconsin – relatório preliminar. N Engl J Med 2020; 382 (10): 903–16.
  23. PINTO, B.C.M., LIMA, M.M.B., TORRES, G.G. et al. Cigarros eletrônicos: efeitos adversos conhecidos e seu papel na cessação do tabagismo. Revista Eletrônica Acervo Saúde, v. 12, n. 10, p. e 4376-e 4376, 2020.
  24. RALHO, A. et al. Effects of electronic cigarettes on oral cavity: a systematic review. Journal of Evidence Based Dental Practice, v. 19, n. 4, p. 101318, 2019.
  25. SAPRU, S. et al. E-cigarettes use in the United States: reasons for use, perceptions, and effects on health. BMC public health, v. 20, n. 1, p. 1-10, 2020.
  26. SILVA, A. L. O., MOREIRA, J. C. A proibição dos cigarros eletrônicos no Brasil: sucesso ou fracasso? Ciência & Saúde Coletiva, v. 24, p. 3013-3024, 2019.
  27. TRIANTAFYLLOU, G. A. et al. Vaping-associated acute lung injury: a case series. American journal of respiratory and critical care medicine, v. 200, n. 11, p. 1430-1431, 2019.
  28. TZORTZI, A. et al. A systematic literature review of e-cigarette-related illness and injury: not just for the respirologist. International journal of environmental research and public health, v. 17, n. 7, p. 2248, 2020.