Em decisão do dia 23/01/2023, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, V. Exa. Alexandre de Moraes, anulou a liminar que dava provimento à Ação Civil Pública do Ministério Público Federal de 2021, que proibia a retomada das atividades de produção de asbesto pela mineradora Sama S.A, após a edição da lei do Estado de Goiás nº 20514/2019. A decisão do ministro se embasou na “presunção de constitucionalidade” da lei goiana, até que se julgue o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6200, que pede a declaração de nulidade dessa lei.
Na prática, isso representa que, amparada pela lei estadual, a mineradora pode recomeçar a explorar o asbesto em solo goiano para fins exclusivos de exportação, “seguindo os padrões e normas internacionais de transporte”. A lei do Estado de Goiás indica, ainda, que a produção se dará “enquanto houver capacidade de extração de lavra ou disponibilidade do minério” (1).
Curiosamente, a extração, beneficiamento, transporte, transformação e comercialização do asbesto foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em novembro de 2017, com efeito em todo território nacional (ADI 3937). A ação reconhece a carcinogenicidade do asbesto tipo crisotila, que já é consenso entre instituições nacionais e internacionais sérias.
No município de Osasco (SP), onde operou uma grande indústria de cimento/amianto, o coeficiente de mortalidade por câncer de pulmão em homens de 60 anos ou mais persistiu em elevação, contrariamente à tendência para o estado de São Paulo em 1996 (2).
Neste mesmo município, houve um claro excesso de óbitos por cânceres respiratórios em uma coorte de ex-trabalhadores daquela indústria, que foram acompanhados pelos pesquisadores entre 1995 e 2016 (3).
Uma análise ecológica nacional comparando a mortalidade em municípios que abrigaram mineração de asbesto e/ou indústrias de cimento/amianto com outros municípios nacionais demonstrou um excesso de mortes por mesotelioma e câncer de pulmão em homens e de câncer de pulmão e ovário em mulheres (4).
Na qualidade de sociedade médica, nos compete discutir as múltiplas implicações da retomada da mineração. A continuidade da exposição ocupacional e ambiental das populações de trabalhadores da mina e do seu entorno e o aumento paulatino de rejeitos contaminados é a consequência mais óbvia.
A Sama S.A explora a região de Minaçu (GO) há cinco décadas e, inclusive, já foi condenada pela justiça por danos morais coletivos (5).
Quem assume a responsabilidade pelo transporte do mineral, atravessando estados que respeitam o banimento? Nos últimos nove anos, dois acidentes envolvendo o transporte de asbesto foram noticiados na imprensa (6, 7). Da mesma forma, quem assume a responsabilidade sobre trabalhadores portuários que lidam com o armazenamento e o carregamento do mineral?
As exportações de asbesto têm como principal destino países com limitados controle de ambientes de trabalho, como a Índia, Indonésia e México. O Brasil continuará na lista de exportadores de riscos ambientais, em franco contraste com o compromisso de responsabilidade, preservação e sustentabilidade ambiental assumido pelo atual governo.
A ADI 6200, que pede a decretação da inconstitucionalidade da lei estadual nº 20514/2019, encontra-se sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes há 3,5 anos. Deverá ser pautada para que o julgamento de mérito ocorra pelo pleno do tribunal. Quantos anos mais vamos aguardar para que isso aconteça? Quantas pessoas ainda se exporão, de forma sabida ou inadvertida e, ao mesmo tempo, absolutamente desnecessária?
Como profissionais com longos anos de atuação em questões dos efeitos de exposições ocupacionais e ambientais sobre a saúde, temos expectativas, no presente momento, de que os Ministérios do Trabalho, Saúde e Meio Ambiente se manifestem, dentro das suas atribuições constitucionais.
A Sociedade Goiana de Pneumologia e Tisiologia (SGPT) subscreve a nota.
Referências
1. Sancionada lei que garante a extração de amianto crisotila em Goiás. Assembleia Legislativa do Estado do Goiás, 19 jul. 2019. Notícias. Disponível em: https://portal.al.go.leg.br/noticias/102864/sancionada-lei-que-garante-a-extracao-de-amianto-crisotila-em-goias. Acesso em 24 jan. 2023.
2. Fernandes GA, Algranti E, Conceição GMS, Wünsch Filho V, Toporcov TN. Lung Cancer Mortality Trends in a Brazilian City with a Long History of Asbestos Consumption. Int J Environ Res Public Health. 2019 Jul 17;16(14):2548. doi: 10.3390/ijerph16142548.
3. Fernandes GA, Algranti E, Wunsch-Filho V, Silva LF, Toporcov TN. Causes of death in former asbestos-cement workers in the state of São Paulo, Brazil. Am J Ind Med. 2021 Nov;64(11):952-959. doi: 10.1002/ajim.23279.
4. Saito CA, Bussacos MA, Salvi L, Mensi C, Consonni D, Fernandes FT, Campos F, Cavalcante F, Algranti E. Sex-Specific Mortality from Asbestos-Related Diseases, Lung and Ovarian Cancer in Municipalities with High Asbestos Consumption, Brazil, 2000-2017. Int J Environ Res Public Health. 2022 Mar 19;19(6):3656. doi: 10.3390/ijerph19063656. Erratum in: Int J Environ Res Public Health. 2022 May 31;19(11)
5. PAES, Caio de Freitas. De olho no STF, governo goiano e indústria do amianto jogam pesado para retomar atividades. De Olho Nos Ruralistas, 07 nov. 2019. Disponível em: https://deolhonosruralistas.com.br/2019/11/07/de-olho-no-stf-governo-goiano-e-industria-do-amianto-jogam-pesado-para-retomar-atividades/. Acesso em 23 jan. 2023.
6. Carga de amianto cai em vicinal após choque entre caminhões em Olímpia. G1, Rio Preto e Araçatuba, 24 set. 2014. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2014/09/caminhao-carregado-com-amianto-em-po-tomba-em-rodovia-de-olimpia.html. Acesso em: 23. jan. 2023.
7. TEIXEIRA, Inácio. Carreta com amianto tomba e mata motorista na BR153. TV Povo, Poções (BA), 27 abr. 2022. Disponível em: https://www.tvpovo.com.br/site/noticia/661/carreta-com-tomba-e-mata-motorista-na-br153. Acesso em: 23 jan. 2023.
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